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14/04/2014
Descarte de medicamentos: as assimetrias, controvérsias e alternativas para um projeto
Veículo: Revista Up Pharma

Autores: Jair Calixto e Lauro D. Moretto
Os resíduos domiciliares de medicamentos constituem um desafio para os países e para a população. De um lado, o descarte das sobras eventuais de medicamentos que, por princípio, não podem ser recuperados nem reutilizados, exige medidas que sejam racionalmente estruturadas para disposição ou destruição, sem gerar ameaças às pessoas, aos animais e ao meio ambiente. A adoção de um sistema de classificação de risco, já utilizado e recomendado internacionalmente, embasado em conceitos técnicos, científicos e sanitários, possibilita atingir uma abordagem racional no descarte e no tratamento desses resíduos, tornando viável e coerente o seu compartilhamento entre os vários responsáveis do segmento farmacêutico, conforme preconiza a legislação vigente. A adoção de uma campanha para coleta e disposição de resíduos de medicamentos ou medicamentos impróprios para consumo, promove racionalização de recursos dos mais variados tipos, contribuindo para a proteção do meio ambiente.

1- Introdução

Desde a promulgação da Lei nº 12.305/2010, a temática da logística reversa de medicamentos tem sido objeto de amplo debate tanto no âmbito federal quanto estadual e municipal. Muito embora os resíduos de medicamentos não estejam explicitamente incluídos na referida lei, a relevância do assunto gerou a oportunidade de se estruturar um modelo que possa ser aplicado aos medicamentos, adotando-se os principais conceitos inseridos no escopo da mesma que incluem: implementação de sistemas de logística reversa, responsabilidade encadeada e compartilhada entre os diversos setores do segmento, bem como a participação de órgãos governamentais.

Os modelos de logística reversa aplicados aos resíduos de agrotóxicos, de pilhas e baterias, de pneus, de óleos lubrificantes e de produtos eletroeletrônicos foram estabelecidos em base aos riscos potenciais destes artigos, diferentemente do que está sendo preconizado no modelo para os resíduos de medicamentos. Neste caso, todos os RDM são considerados, a priori, perigosos, sem se levar em consideração os riscos potenciais embasados em critérios científicos, técnicos e sanitários, já conhecidos tanto nacional quanto internacionalmente.

A exclusão dos medicamentos do rol dos artigos que têm que sofrer o processo de logística reversa é tácita, não se entendendo que os modelos propostos na lei para os itens discriminados sejam adotados da mesma forma para os resíduos de medicamentos. 

Apesar de terem sido preteridos de inclusão na lei, entende-se que a grande maioria dos resíduos de medicamentos não pode ser disposta no ambiente de forma irracional, mesmo que o dano potencial possa ser mínimo ou reduzido, diferentemente de uma pequena parcela de medicamentos que poderia sofrer o processo de logística reversa tradicional, para ser destruída de acordo com critérios próprios definidos por seus fabricantes.

Mesmo que não haja um modelo internacional padronizado, existem critérios de classificação de riscos de medicamentos com base em seus princípios ativos, inclusive adotados no Brasil, que caracterizam os riscos potenciais de seus resíduos, os quais podem ser utilizados para um processo de logística reversa. A Norma ABNT nº 10.004/2004 e a Portaria CVS nº 21/2008, embasadas em conhecimentos e normativas internacionais, relacionam  as substâncias para as quais devem ser estruturadas medidas especiais, diferenciadas portanto da grande maioria dos medicamentos em uso na terapêutica humana.

Essa reduzida parcela de medicamentos que oferecem riscos está citada na Portaria CVS nº 21/2008, que identifica as categorias de produtos que apresentam periculosidade em relação à carcinogenicidade, teratogenicidade ou desenvolvimento de toxicidade, à toxicidade reprodutiva, à genotoxicidade (mutagenicidade ou clastogenicidade), evidências de toxicidade grave a órgãos e sistemas em baixa doses e disrupção endócrina. Os insumos e medicamentos que contêm essas substâncias exigem tratamentos especializados antes de serem dispostos no meio ambiente. Esses têm que ser devolvidos aos fabricantes ou a seu agente especializado para que sofram um processo de tratamento específico antes de ser dispostos no meio ambiente.

De um modo geral, a adoção de um procedimento de descarte de resíduos de medicamentos não incluídos no rol daqueles considerados perigosos, tem que atender aos princípios básicos da Lei nº 12.305, que inclui a responsabilidade compartilhada e encadeada.

As estimativas de resíduos de medicamentos, avaliadas com base em estudos já realizados, revelam valores reduzidos que não possibilitam estruturar a coleta por meio  de procedimentos permanentes, uma vez que estes pressupõem custos fixos para a manutenção de rotinas de descarte, coleta centralizada, transporte e processos de destruição ou destino ambientalmente sustentáveis. 

2- Modelos existentes para a coleta de resíduos domiciliares de medicamentos

No Brasil, antes da promulgação da Lei n° 12.305, já havia regulamentação sanitária e ambiental com critérios de classificação do potencial risco ambiental de resíduos de medicamentos. Com base nesses critérios, algumas iniciativas de parcerias voluntárias estabeleceram procedimentos para o descarte de medicamentos domiciliares impróprios para consumo, na maioria das vezes sem a participação do poder público.

Nos modelos de coleta de procedimentos voluntários, os resíduos de medicamentos são entregues nas farmácias pela população, as quais armazenam e entregam aos prestadores de serviços municipais que se encarregam de dar o destino final, ou seja, a incineração. Os dados deste procedimento indicam baixo volume mensal acarretando, consequentemente, elevado custo para suportar a estrutura fixa mínima indispensável.

Nesses modelos, o transporte é um fator de alto custo, contribuindo, em sua maioria, com cerca de 70% do total. Além dos custos em si, há que se analisar a relação custo/ benefício de proceder a destinação de determinados resíduos, transportados por longas distâncias, como no caso das regiões Norte e Nordeste onde as viagens poderão alcançar quase 4.000 km (por exemplo, de Boa Vista – RR até Belém – PA). Quando se converte a quantidade de combustível consumida nestas viagens em volume de gás carbônico produzido, ocorre o questionamento: é válido gerar um prejuízo ambiental maior, no intuito de atender a esta demanda? Dependendo da distância a ser percorrida, o impacto ambiental com a geração de gás carbônico é maior do que a destinação de alguns resíduos de produtos, muitas vezes inócuos ao meio ambiente, como por exemplo, fitoterápicos, sais minerais, vitaminas, aminoácidos etc.

Do ponto de vista da lógica empresarial, dos custos apurados e operações envolvidas, não há razão para a manutenção de um sistema complexo, logisticamente falando, com custos e operações onerosas, quando procedimentos internacionais revelam racionalidade diferenciada.

Encontram-se disponíveis, na literatura, diversos relatos de experiências e ações relacionadas à coleta e ao tratamento de resíduos de medicamentos, com enfoques e procedimentos diferenciados. São conhecidos os modelos utilizados em Portugal, na Espanha, além de relatos de muitos outros países da União Européia, bem como as experiências realizadas no México, Colômbia, Canadá, Austrália e Japão.


Nos Estados Unidos da América, quando o assunto foi objeto de avaliação pela FDA, o método inicialmente aconselhado era a deposição direta no esgoto, de forma a evitar contatos acidentais com crianças ou animais domésticos. No entanto, em 2007, passou-se a indicar a colocação dos resíduos de medicamentos no lixo comum, ou entregá-los na farmácia, a fim de evitar a entrada dos mesmos nos esgotos.

A etapa sucessiva consistiu na criação do programa designado de SMARxT DISPOSAL, iniciativa público-privada que visava orientar a população sobre o descarte adequado das sobras e de medicamentos vencidos. Da mesma forma o programa tinha por objetivo alertar a população sobre os impactos ambientais potenciais do descarte inadequado. A orientação passada à população era a de colocar os medicamentos impróprios para consumo em um saco plástico (no caso de sólidos, acrescentar água para dissolvê-los e, posteriormente, colocar areia, borra do café ou qualquer outro material) que tornasse o medicamento não atrativo, para evitar que fosse ingerido por crianças ou animais. Depois o saco devia ser fechado e colocado na lixeira.

Em 2010, foi instituído o Dia Nacional da Coleta de Medicamentos Prescritos (National Prescription Drug Take-Back Day), com grande repercussão na mídia. Em sua quarta edição, em abril de 2012, foram recolhidas 276 toneladas de medicamentos vencidos ou não utilizados, por meio de 5.659 pontos de coleta disponíveis em todos os estados e territórios. A campanha realizada em 26 de outubro de 2013, recebeu 371 toneladas de medicamentos impróprios para consumo em 5.800 pontos de coleta. Esses valores de outubro de 2013 foram cerca de 50% superiores àqueles recolhidos em abril do mesmo ano. A soma de resíduos e medicamentos impróprios para consumo recebidos em todas as campanhas, desde 2010, atingiu 1.733 toneladas. Essas campanhas têm sido desenvolvidas duas vezes ao ano, em todos os estados e territórios e coordenada pela DEA – Drug Enforcement Administration. A próxima está programada para 26 de abril de 2014. A DEA conta com o apoio de instituições governamentais, inclusive militares, empresariais e da sociedade.

3- Classificação de riscos dos fármacos e medicamentos

Uma revisão da classificação de risco potencial que representam fármacos e medicamentos, tomando por base os critérios utilizados na Portaria CVS 21/2008, em moldes assemelhados ao da RDC Anvisa nº 306/2004, permitirá  atualizar o conhecimento sobre os mais representativos riscos que oferecem fármacos e medicamentos às pessoas, aos animais e ao meio ambiente, possibilitando a adoção de medidas operacionais preventivas por parte de órgãos governamentais competentes, desestimulando opiniões não fundamentadas, muitas das quais disseminadas em veículos da mídia com enfoque sensacionalista.

O conhecimento de fármacos e medicamentos, além  de seus benefícios e segurança aos pacientes, encontra amplo respaldo na  Organização Mundial da Saúde – OMS, e em órgãos governamentais e entidades de grande credibilidade internacional. Esses mesmos  dados podem subsidiar os estudos para o estabelecimento de critérios diferenciados na classificação destinada ao descarte seguro dos resíduos domiciliares de medicamentos.

O trabalho de revisão da segurança ambiental, em relação ao descarte e disposição dos resíduos de medicamentos, deve incluir as novas categorias de fármacos e medicamentos (biotecnológicos), de novas tecnologias (nanotecnologia) e novos conhecimentos sobre fármacos e medicamentos já existentes na terapêutica. Essa revisão possibilitará propor procedimentos com critérios racionalizados para um processo sustentável e duradouro.

Evidentemente, a tarefa de revisão da classificação de risco de resíduos que oferecem periculosidade aos seres humanos, animais e meio ambiente é uma tarefa complexa, a qual somente terá credibilidade se for realizada por equipe multidisciplinar qualificada para tal.

4- Proposições

A complexidade que envolve um procedimento de recolhimento dos medicamentos impróprios para consumo, em poder da população, exige um trabalho coordenado muito mais amplo do que apenas de voluntários ou de pequenos grupos ou mesmo de órgãos governamentais, de forma independente. É imprescindível conhecer os procedimentos e as experiências internacionais, com base nas quais se pode estruturar um modelo nacional.

Um dos primeiros passos que se pode propor é o encaminhamento de um pleito ao Ministério da Saúde para estruturar um projeto de revisão da classificação de risco dos resíduos de medicamentos, dos produtos para a saúde e de outros produtos de grande consumo, para, em conjunto com outros ministérios e órgãos da sociedade civil, estabelecer uma efetiva revisão da classificação, com graduação de periculosidade de insumos e artigos industrializados para uso humano, com o objetivo de servir de base para propostas de tratamento de seus eventuais resíduos.

Outra proposição, temporária e concomitante, seria a adoção de critérios assemelhados aos de outros países, como por exemplo, o do programa DEA National Prescription Drug Take-Back Day (Dia do retorno dos medicamentos), que tem demonstrado eficiência no seu propósito, além de mobilizar a população, as entidades da sociedade e os órgãos públicos, critérios esses que estão preconizados na Lei 12.305/2010.

5- Conclusões

Resumindo, entendemos que não se pode estabelecer um critério de descarte e coleta de medicamentos impróprios para consumo sem que antes seja feita uma atualização da classificação de riscos e periculosidade dos fármacos e medicamentos em uso na terapêutica atual.

Entendemos também que o modelo de coleta e destinação de resíduos de medicamentos deve contemplar procedimentos diferenciados que levem em conta a classificação de risco.

Enquanto não se tem a preconizada classificação, e de forma a se evitar a estruturação de procedimentos que podem se tornar imprecisos, ineficientes e onerosos, propõe-se a adoção de campanhas anuais de recolhimento de resíduos de medicamentos, mediante a mobilização da população, das entidades, de órgãos governamentais, em beneficio de toda a sociedade brasileira. 

6- Bibliografia
SCHLEIER, R., LANDIN, I. C., CALIXTO, JAIR, MORETTO, LAURO D. Análise dos principais elementos em relação ao descarte de resíduos de medicamentos domiciliares. São Paulo: Fármacos & Medicamentos, nº 69, ano XIV, PP 34-56, 2013

HIRATUKA, CÉLIO. Logística Reversa para o setor de medicamentos. Pesquisadores NEIT/IE-Unicamp. Brasil: Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI, 2013.  

CASA CIVIL. LEI nº 12.305, de 2 de Agosto de 2010. Política Nacional de Resíduos Sólidos

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÃNCIA SANITÁRIA. Resolução RDC nº 306, de 07 de dezembro de 2004. Dispõe sobre o Regulamento Técnico para o gerenciamento de resíduos de serviços de saúde. 200.

BRASIL. ABNT.  ABNT NBR 10004:2004. NBR 10004. Classificação de resíduos Sólidos. Associação Brasileira de Normas Técnicas. 71 pp. Rio de Janeiro: ABNT, 2004

SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE COORDENADORIA DE CONTROLE DE DOENÇAS. CENTRO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA-DIVISÃO TÉCNICA DE AÇÕES SOBRE MEIO AMBIENTE. Portaria CVS nº 21, de 10/09/2008.

BILA, D.M., DEZZOTI, M., Fármacos no meio ambiente. 26,4. Química Nova, 2003

CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução CONAMA nº 237, de 19 de dezembro de 1997.

CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução CONAMA nº 358 de 29 de abril de 2005, DOU 04/05/2005. 

COSTA, S.H. Tratamento e disposição final de resíduos de medicamentos quimioterápicos e de rejeitos radioterápicos: estudo comparativo entre a legislação internacional e a brasileira. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010.

EICKHOFF, P; HEINECK, ISABELA; SEIXAS, L.J. Gerenciamento e destinação final de medicamentos: uma discussão sobre o problema, Re. Bras. Farm. 90, 1.: 2009

FALQUETO, E., KLIGERMAN, D. C., ASSUMPÇÃO, R. F. Como realizar o correto descarte de resíduos de medicamentos? Escola Nacional de Saúde pública Sergio Arouca: Fundação Oswaldo Cruz, 2006.

MACHADO, N. L.; MORAES, L.R.S; RSSS: Revisitando as soluções adotadas no Brasil para tratamento e destino final. Engenharia Sanitária Ambiental 9,1: 2004

WEBSITES

Free and safe medication disposal will once again be available nationwide - with no questions asked.
Disponível em: http://www.drugs.com/article/national-drug-take-back-day.html, acessado em 26.02.2014.

DEA to Hold Next Prescription Drug Take-Back Day on April 26, 2014.
Disponível em: https://www.nabp.net/news/dea-to-hold-next-prescription-drug-take-back-day-on-april-26-2014, acessado em 26.02.2014.

Washington Residents Use Medicine Take-Back Programs.
Disponível em:  http://www.takebackyourmeds.org/what-you-can-do/washingtonians-use-medicine-take-back-programs-1, acessado em 26.02.2014.

National Prescription Drug Take-Back Day.
Disponível em: http://www.army.mil/standto/archive/issue.php?issue=2012-04-23, acessado em 26.02.2014.

Jair Calixto é farmacêutico e Gerente de Boas Práticas e Auditorias Farmacêuticas do Sindusfarma.

Lauro Moretto é farmacêutico e vice-presidente executivo do Sindusfarma.
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