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10/07/2020
Quase lá

Veículo: Veja

Jornalistas: Giulia Vidale e Sofia Cerqueira

Um tema, não o único, mas primordial, tem ocupado o tempo de uma série de encontros remotos, por meio de videoconferência entre campeões da filantropia e do capitalismo mundial: a busca de uma vacina contra o novo coronavírus. Há cerca de dois meses, o fundador da Microsoft, Bill Gates, o megainvestidor Warren Buffett e o empresário brasileiro Jorge Paulo Lemann trocavam impressões sobre a pandemia e, num momento em que o mundo estava extremamente abalado pelo surto, demonstravam algum otimismo. Lemann estava particularmente animado porque havia sido procurado pelos diretores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, para ajudar na busca por um imunizante. Um pedaço relevante da pesquisa, realizada em parceria com a farmacêutica britânica AstraZeneca, poderia ser feito no Brasil. Disse sim no mesmíssimo dia, e se comprometeu a bancar os custos de aplicação da substância experimental em 2 000 voluntários paulistas — 1 000 deles de modo direto e a outra metade com a assistência de um par de apoiadores, a Fundação Brava e a Fundação Telles. Nascia ali uma das maiores apostas da humanidade na luta contra o novo coronavírus. “Estamos esperançosos, animados, e tentando ajudar os profissionais que mais entendem do assunto no mundo”, disse Lemann a VEJA. Por força de atávica discrição, ele não confirma, mas sabe-se que, ao anúncio de uma vacina, estaria disposto a desembolsar algo em torno de 30 milhões de reais para apoiar algum fabricante de modo a incentivar rápida produção por aqui.

Nunca antes, como agora, gastou-se tanto (estima-se que o valor global chegue a mais de 20 bilhões de dólares) com a procura de uma vacina que proteja o mundo do Sars-CoV-2, o vetor da Covid-19. Afinal, até a quinta-feira 9, o vírus já atingiu em números oficiais mais de 12 milhões de pessoas, com cerca de 550 000 mortes — quase 70 000 no Brasil. Na corrida para interromper uma tragédia ainda maior, existem hoje em todo o planeta em torno de 160 projetos de imunizantes. Destes, 21 já estão em fase de testes clínicos em humanos — e dois chegaram à derradeira etapa exigida pelas agências regulatórias para aprovação. Ambos estão no Brasil: o de Oxford e o da chinesa Sinovac Biotech, que também desembarcou para testagem, por meio do Instituto Butantan, de São Paulo, ancorado pelo governo do estado. Especialistas ouvidos por VEJA acreditam que, com a aceleração de etapas, uma vacina possa ser posta em circulação ainda entre novembro e dezembro deste ano. A gigante Pfizer, por exemplo, já começou a fabricá-la, mesmo sem certezas, em procedimento raro, mas justificável, de modo a ganhar tempo. Evidentemente, só a distribuirá depois de confirmações absolutas, com total segurança. Trata-se de uma corrida em que o vencedor (tomara que assim seja) ganhará em tempo recorde. No caso do sarampo, por exemplo, passaram-se quatro anos entre a eclosão da doença e a proteção química.

A participação brasileira nesta busca pelo santo graal é mundialmente relevante, e precisa ser celebrada. O país foi procurado em virtude da explosão de casos, e não há como negar essa constatação (testam-se vacinas onde elas são necessárias), mas também como resultado de um histórico de reputação internacional na área. O programa de vacinação brasileiro, apesar de recentes recuos durante a Presidência de Jair Bolsonaro, é invejável. Diz a pesquisadora brasileira Sue Ann Costa Clemens, diretora do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena, a interlocutora inaugural entre Oxford e Lemann: “No início de maio, muitos outros países tinham curva ascendente como a do Brasil. O país foi escolhido pela excelente estrutura dos centros de pesquisa, capacidade dos pesquisadores e por ter conseguido, em pouquíssimo tempo, grande quantidade de voluntários”. Foram dois dias para encontrar instituições aptas, uma semana para a confirmação de patrocinadores e apenas 44 dias entre o primeiro contato e o início dos trabalhos. “Estou no comitê científico de outras duas vacinas e não vi essa agilidade em lugar algum”, diz Sue, coordenadora do estudo no Brasil.

Louve-se, em particular, a estrutura da Fiocruz, no Rio de Janeiro, que anualmente tira da linha de montagem 120 milhões de doses de imunobiológicos contra febre amarela, pólio, sarampo, caxumba e rubéola, entre outros. A Fiocruz está se preparando para, dado o sinal verde tão esperado, produzir mensalmente até 40 milhões de doses contra a Covid-19. Isso significa que em pouquíssimo tempo, pouco mais de cinco meses após a comprovação da eficácia da vacina, toda a população brasileira estará imunizada. Para isso, a instituição receberá investimento do Ministério da Saúde, comprará biorreatores de última geração e aperfeiçoará sistemas de purificação e filtragem, além de ter direito a ampla transferência de tecnologia importada do Reino Unido. “Ainda que a vacina não demonstre ser 100% efetiva, o que é uma possibilidade, teremos extraordinários ganhos de conhecimento que nos permitirá fortalecer nossa capacidade de produzir outras substâncias”, diz a pesquisadora Nísia Trindade, presidente da Fiocruz.

Tudo somado, com os dois procedimentos mais relevantes do planeta, haverá cerca de 14 000 voluntários brasileiros entre 18 e 55 anos nos testes da vacina — 1 000 deles financiados pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro. Em todo o mundo, apenas no pacote de Oxford, serão 50 000 doses distribuídas entre Brasil, Estados Unidos e África do Sul, além do Reino Unido. As inscrições são abertas apenas a pessoas altamente expostas ao vírus, em especial profissionais da área de saúde e afins, como motoristas de ambulância e agentes de limpeza em hospitais que ainda não foram infectados. O estudo é do tipo “simples-cego randomizado”. Ou seja, as pessoas são sorteadas aleatoriamente e podem cair em dois grupos distintos: o da vacina propriamente dita (ChAdOx1 nCoV-19, a sigla que pode fazer história) e o de “controle”, no caso um imunizante para meningite (MenACWY), sem que saibam em qual estão.

Há, nessa turma de heróis, embora eles rejeitem a alcunha, um misto de coragem e altruísmo — com controle, evidentemente, daí a seleção de pessoas com boa saúde e fora das faixas etárias que representem risco (leia os depoimentos ao longo desta reportagem). Mais de 1 100 homens e mulheres já passaram por triagens no Brasil, e 667 receberam a agulhada. No termo de consentimento entregue aos profissionais de Oxford e da AstraZeneca, o cidadão lê alguns alertas que só não soam assustadores por ser capítulos protocolares e impositivos. Num dos trechos está escrito: “há o risco de eventos adversos graves, como reações alérgicas, reações no sistema nervoso e possibilidade de um efeito inesperado”. Para participar dos estudos clínicos, o candidato não pode ter nenhuma comorbidade, como hipertensão, doença gastrointestinal, renal ou respiratória, e, no caso de mulheres, dispostas a manter o uso de contraceptivos durante pelo menos um ano. Depois da entrevista de triagem, feita diante de uma bancada de médicos, o voluntário é encaminhado para a realização de um teste sorológico e um de PCR — o primeiro verifica se há anticorpos no organismo para o vírus, indicando contaminação anterior, e o segundo atesta infecção naquele momento, o que inviabilizaria a participação. Com resultados negativos, dá-se a convocação em três ou quatro dias para a aplicação da vacina no músculo deltoide do braço. Feita a picada, são entregues um termômetro e uma pequena régua. Nos 28 dias subsequentes, será preciso medir a temperatura e eventuais reações cutâneas (daí a régua). Os sintomas esperados são semelhantes aos da gripe, com dores musculares, incômodo nas articulações, febre e náusea. No período de um ano, haverá outras três visitas aos coordenadores do estudo.

Até que se chegue a algum veredicto confiável, é natural que paire no ar, de modo quase palpável, uma nuvem de ansiedade traduzida em uma questão central: com tantas candidatas em desenvolvimento, como saberemos quando uma vacina é boa e firme o suficiente para ser aprovada e utilizada na população em geral? O ideal seria alcançar a eficácia contra a febre amarela (de 99%) ou contra o sarampo (96%). Entretanto, uma vacina com índice de sucesso mais baixo não é necessariamente ruim, principalmente diante de uma pandemia. Segundo a OMS, uma vacina que consiga proteger pelo menos 70% da população, incluindo idosos, já seria um grande sucesso. Segundo especialistas, no pior dos cenários, um imunizante que não previna a infecção, mas evite casos graves, como é o caso da vacina contra a tuberculose, já representaria um grande avanço no combate à Covid-19 e um passo em direção à volta à normalidade. Diz o embaixador britânico no Brasil, Vijay Rangarajan, de mãos dadas com a Oxford e o braço tropical: “A única maneira de ajudar nossos povos a sair dessa crise o mais rápido possível é desenvolver, testar, financiar, produzir e distribuir uma vacina, tudo ao mesmo tempo. Isso não é normal e tem um risco enorme, mas é preciso arriscar”.

As ponderações feitas por pessoas próximas aos projetos não devem ser desprezadas. Existe, sim uma possibilidade de que nenhum imunizante seja eficiente contra o novo coronavírus em pouco tempo — nem os que estão sendo estudados por aqui nem os de fora. É provável, aliás, que a maior parte deles não dê certo. “Imagino que meia dúzia das vacinas trabalhadas possa dar certo, embora não possamos descartar o fracasso”, alerta a microbiologista Nathalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência. E então será preciso um pouco mais de tempo e paciência para vencermos esse desafio. “Em um primeiro momento, é possível que tenhamos apenas um paliativo”, diz Carlos Murillo, CEO da Pfizer no Brasil. Mas qualquer avanço que se faça pode significar mais vidas poupadas, o que já valeria toda a energia e investimentos nessa busca. E, insista-se, essas são de fato boas apostas, com excepcionais chances de sucesso.

Eis aí a beleza da ciência, em movimentos de sístoles e diástoles, sem a qual a civilização não existiria. E as vacinas, na construção da inteligência humana, no embate contra as doenças, são personagem indissociável do progresso, apesar da insistente pressão de grupos avessos à sensatez. No início do século XIX, quando a pioneira vacina contra a varíola criada por Edward Jenner (1749-1823) começou a ser aplicada em grande número, houve imensa grita. A ideia de injetar uma preparação biológica em humanos para criar imunidade “artificial” despertou objeções sanitárias, políticas e até religiosas. Cem anos depois, em 1904, o Brasil se viu em meio ao movimento conhecido como a Revolta da Vacina, em que a população foi às ruas na então capital, o Rio de Janeiro, protestar contra a obrigatoriedade da vacinação que visava a erradicar, entre outros males, a febre amarela. Hoje, há a tolice do movimento antivacina, ancorado em argumentos religiosos e em um suposto direito individual que se sobreporia ao coletivo — e males como o sarampo, que pareciam vencidos, cresceram 300% no mundo só nos primeiros meses de 2019. A ignorância, assim como o Sars-CoV-2, é de complicada erradicação. Mas nenhum desafio é intransponível para a poderosa combinação de ciência, trabalho sério e inteligência.

 

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