Veículo: O Globo
Jornalista: Bernardo Yoneshigue
A primeira terapia com a técnica de edição genética CRISPR, que rendeu o Prêmio Nobel de Química a uma dupla de cientistas em 2020, foi aprovada no mundo. O aval foi concedido pela Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde (MHRA) britânica para o Casgevy (exagamglogene autotemcel), um tratamento destinado a pacientes a partir de 12 anos com anemia falciforme ou talassemia beta dependente de transfusão.
“Hoje é um dia histórico na ciência e na medicina. Esta autorização do Casgevy no Reino Unido é a primeira autorização regulatória de uma terapia baseada em CRISPR no mundo”, celebra Reshma Kewalramani, CEO e presidente da Vertex, laboratório responsável pela terapia junto ao CRISPR Therapeutics, em nota.
Alvo de estudos em diversas frentes de pesquisa médica, a técnica CRISPR é considerada revolucionária, embora o sinal verde para o uso clínico tenha vindo apenas agora. O método funciona como uma espécie de “tesoura genética” para fazer “recortes” com precisão em locais do DNA. Na medicina, o objetivo é que essas edições nos genes consigam reparar erros que causam doenças genéticas.
— A aprovação é uma situação semelhante à da vacina da Covid-19 de RNA mensageiro, que inaugurou uma técnica nova no uso clínico. Existem estudos com o CRISPR para câncer, doenças degenerativas, diabetes tipo 1. A tecnologia tem um grande potencial para diversos diagnósticos —diz o doutor em Genética pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Salmo Raskin, diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, em Curitiba.
As doenças
Tanto a anemia falciforme quanto a talassemia beta são causadas por erros genéticos que afetam a produção da hemoglobina, proteína presente nos glóbulos vermelhos para transportar oxigênio pelo corpo.
“São condições dolorosas que duram a vida toda e, em alguns casos, podem ser fatais. Até hoje, um transplante de medula óssea tem sido a única opção de tratamento permanente. Tenho o prazer de anunciar que autorizamos um tratamento inovador e pioneiro de edição genética chamado Casgevy que, em testes, demonstrou restaurar a produção saudável de hemoglobina na maioria dos participantes”, celebra Julian Beach, diretor- executivo interino de qualidade e acesso à saúde da MHRA, em comunicado.
Na prática, o método funciona retirando células-tronco da medula óssea do paciente para que elas sejam editadas em laboratório com o CRIS- PR e reintroduzidas no paciente. Raskin explica que existe uma produção de hemoglobina durante a fase fetal que é interrompida pela ação de um gene chamado BCL11A. Por isso, a técnica “recorta” esse gene, para que essa hemoglobina volte a ser produzida nos pacientes.
Nos testes clínicos, 97% dos pacientes com anemia falciforme permaneceram sem dores intensas por pelo menos 12 meses após o tratamento. Entre os com talassemia, 93% passaram a não precisar mais de transfusão de glóbulos vermelhos pelo mesmo período — e os demais tiveram uma redução dessa necessidade.
— O resultado foi que a pessoa praticamente não precisou mais de transfusão sanguínea nem teve essas crises de dores que são terríveis para o paciente. Ainda não sabemos sobre cura porque é muito cedo, precisamos esperar anos, e os estudos foram pequenos. Mas há essa possibilidade —diz Raskin.
Ele lembra, porém, que o procedimento é delicado: envolve internação hospitalar e um preparo semelhante ao do transplante de medula. Os efeitos colaterais relatados foram também parecidos com os da cirurgia, como náuseas, fadiga, febre e aumento do risco de infecção.
Depois de as células editadas serem reintroduzidas, os pacientes precisam permanecer pelo menos um mês no hospital para que elas se instalem na medula óssea e comecem a produzir glóbulos vermelhos com a forma estável da hemoglobina.
— Há o uso do CRISPR in vivo e ex vivo. O ex vivo é esse em que eles retiram as células, fazem a edição e depois realizam a reintroduçào. É mais complexo, caro e requer diversos cuidados. Existem testes in vivo com a técnica, realizada direto no local. Um recentemente mostrou resultados muito animadores para tratar colesterol alto em pacientes com uma doença genética que causa o aumento —afirma Raskin.
O aval do Casgevy no Reino Unido é um primeiro passo que deve ser seguido por outros países. Nos Estados Unidos, a agência reguladora FDA está perto de dar um sinal verde. No fim de outubro, um painel de especialistas do órgão disse que a terapia é segura o suficiente para uso clínico. Uma anúncio anterior já havia reconhecido a eficácia. A decisão final sobre a aprovação, ou não, será feita até o próximo dia 8.